UM DIA FRIO

Ônibus lotado. Uma friagem danada e por isso todas a janelas fechadas. “Valha-me Deus” era a coisa mais leve que Alice podia pensar. Ela conseguiu um lugar entre uma janela e outra e sua claustrofobia tava dando um aviso: “tô chegando”.
Ela fez os exercícios de respiração que aprendeu na internet, fechou os olhos, tentou pensar em coisas boas. Algumas vieram à sua mente, como no dia em que seu namorado mendou três buquês de rosas pro seu trabalho. Ela sorriu sozinha, o cara do lado achou aquilo meio esquisito. Como alguém podia sorrir num ônibus todo embaçado cheio de gente tossindo e colocando outras substâncias esdrúxulas no ar viciado? Enfim, ele não tinha nada a ver com aquilo. Ela sorriu porque quis e pronto.
O trajeto não era longo, uns quinze minutos e ela estava no seu destino. Mas naquele dia frio o universo resolveu conspirar. Sim. Porque Alice tinha mania de perseguição e achava que absolutamente tudo estava contra ela. Até pra nascer deu errado, e teve que sair de fórceps, o que por pouco não afetou a aparência do seu rosto branco. Digressões e digressões povoavam sua cabeça já cheia de problemas.
O ônibus parou no meio da avenida, a chuva apertou um pouco, e começaram os comentários. “Caraca, será que essa gente não cala a boca? São seis e meia da manhã...gente chata”. Um acidente mais à frente causou uma parada no trânsito e o zum zum zum infernal começou. Todo mundo esticando o pescoço, pedindo pra abrir janela, povinho curioso e sádico.
O telefone tocou. Era Beto.”Oi meu amor, onde você está?”. Naquela hora ela pensou em dizer um impropério, mas Alice sabia que Beto era sensível, ainda mais tão cedo, podia desencadear alguma crise que duraria sei-lá-até-quando, porque ele tinha TOC.
Que dupla. Alice era bipolar e conheceu Beto numa sessão de terapia de grupo no Hospital de sua cidade. Claro que ia virar amor. Afinal, quem não se apaixonaria por um homem com mania de limpeza?? Tudo bem que Beto chegava a ser albino de tão limpo, mas ela adorava, pois ele em nada lembrava os fedorentos do seu pai e dois irmãos que morreram num acidente de carro anos antes. “Que Deus os tenha, e os lave”, ela sempre dizia dentro de si quando pensava neles.
Beto falou umas amenidades, era só saudade mesmo, afinal ele só tinha visto Alice na noite anterior e isso era muito pra ele. Chegava a ser angustiante. Mas ela gostava. Ela estava na fase da euforia, pois na fase depressiva ela queria matar e enterrar Beto numa banheira de água sanitária pra ele morrer feliz e limpinho como ele gostava. Mas ela estava bem, já tinha até sorrido seis e meia da manhã...
O acidente não foi grave e tudo se resolveu no tempo do telefonema de Beto, o que levou uns dez minutos. Ela deu graças a Deus quando saiu daquele ônibus morno e sofreu uma rufada de vento gelado no rosto.
Mais um dia estava começando.


Crica Viegas, inverno de 2010.

Comentários

Mila Olive disse…
kkkk... Ele tinha TOC?? Pai e irmãos fedorentos? Gostei de enterra-lo em uma banheira com água sanitária. Eu escolheria um mix de cloro com vanish... kkk.
Muito bom!!!!
Nossa, esta estoria é de lascar. Mas apenas foi um dia que começou,não é mesmo...
bjs
Yo Neris disse…
Excelente e muito divertido, o seu texto Crica!
Adorei!
Bjo no core, amiga
Isadora disse…
Crica, estava eu aqui lendo com atenção quando soltei uma gargalhada vê-lo morto em uma banheira com água sanitário. Santo Deus! Aida bem que Alice está na fase eufórica, pois o Beto corre sério perigo.
Adorei.
Um beijo
Mila Olive disse…
Sabe que me lembrei daquela música: "um dia frio, um bom lugar pra ler um livro... "... rsrs

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