QUER SABER MAIS UM POUCO SOBRE FREUD?

Sigmund Freud, aos 70 anos, em entrevista feita por George Sylvester Vierek, em 1930, para ”Glimpses of the Great”. Um homem que tinha em si uma certa amargura, mas também lúcido sobre si e seu tempo.



“Meus 70 anos me ensinaram a aceitar a vida com alegre humildade.” Quem fala assim é o grande explorador das profundezas da alma. Não existe outro mortal que, como Freud, tenha estado tão próximo de encontrar uma explicação para o insondável mistério do comportamento humano.

Nossa conversa foi em sua residência de verão em Semmering, nos Alpes austríacos. Freud tinha a face contraída, como se estivesse sofrendo. Sua mente permanecia alerta, sua cortesia continuava impecável, mas fiquei alarmado com a pequena dificuldade que demonstrava ao falar. Tinha se submetido a uma intervenção cirúrgica devido a uma doença maligna na mandíbula superior. Desde então, leva implantado um aparelho para facilitar a articulação.

‘”Detesto essa mandíbula mecânica. A luta com esse mecanismo me faz desperdiçar uma energia preciosa. Mas prefiro ter uma mandíbula mecânica do que não ter nenhuma, a sobrevivência à extinção. Talvez, ao tornarem a vida impossível conforme envelhecemos, os deuses estejam mostrando compaixão. Afinal, a morte nos parece menos intolerante do que as múltiplas cargas que suportamos.”

Freud não admite que o destino o trate com especial dureza.

‘”Por que deveria esperar um tratamento especial? A velhice chega para todos. Não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi 70 anos. Sempre tive o suficiente para comer. Desfrutei de muitas coisas: da camaradagem de minha mulher, de meus filhos, do pôr do sol. De vez em quando tenho a satisfação de apertar uma mão amiga. Em algumas ocasiões encontrei seres humanos que quase chegaram a me compreender. Que mais se pode pedir?”

‘”Alcançou a fama”, respondi. “Seu trabalho influiu na literatura de todos os países. O homem vê a si próprio e contempla a vida com outros olhos graças ao senhor. E, por ocasião do seu setuagésimo aniversário, o mundo se uniu para prestar-lhe uma homenagem. Exceto a sua própria universidade.”

“Se a Universidade de Viena me tivesse oferecido seu reconhecimento, somente teria me envergonhado. Não existe razão alguma pela qual devam reconhecimento a mim ou à minha doutrina só porque faço 70 anos. Não dou importância desmedida aos números. A fama nos chega depois da morte e, francamente, o que ocorrer depois da minha não me preocupa. Não desejo a glória póstuma.”

“Para o senhor não significa nada que o seu nome sobreviva?”

‘”Nada em absoluto. O futuro dos meus filhos me interessa mais. Espero que a vida deles não seja tão dura. Eu não posso torná-la mais fácil. A guerra (Primeira Guerra Mundial) praticamente acabou com a minha modesta fortuna, a poupança de toda uma vida. Por sorte, minha velhice não é uma carga muito pesada. Meu trabalho ainda me dá prazer.”

Passeávamos pelo íngreme jardim de sua casa. Freud acariciou com ternura um arbusto. “Interessa-me muito mais esta planta do que qualquer coisa que possa ocorrer quando eu esteja morto.”

“Não deseja a imortalidade?”

“Sinceramente, não. Quando alguém percebe o egoísmo por trás de toda conduta humana, não sente o menor desejo de renascer. Me satisfaz saber que a eterna moléstia de viver chega finalmente ao fim. Nossa vida é composta, necessariamente, de uma série de compromissos. É uma luta sem fim entre o ego e o seu entorno. O desejo de prolongar a vida além do natural me parece absurdo. Não há razão para desejarmos viver mais tempo, mas são muitos os motivos para que queiramos fazê-lo com a menor quantidade possível de incômodos. Eu sou razoavelmente feliz porque agradeço a ausência de dor e desfruto dos pequenos prazeres da vida, da presença de meus filhos e das minhas flores.”

“É possível”, prosseguiu Freud, ”que a própria morte não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Do mesmo modo que em nosso interior convivem simultaneamente o ódio e o amor por uma pessoa, a vida combina o desejo de sobrevivência com um ambivalente desejo de aniquilação. Como um elástico que tem a tendência de recuperar a sua forma original, a matéria viva, consciente ou inconscientemente, deseja conseguir de novo a inércia total e absoluta da existência inorgânica. O desejo de morte e o de vida convivem em nosso interior. A morte é o par natural do amor. Juntos, governam o mundo.”

“Na sua origem”, continua Freud, “a psicanálise assumia que o amor era o mais importante. Atualmente, sabemos que a morte é igualmente importante. Biologicamente, cada ser vivo, por mais forte que arda nele o fogo da vida, tende ao nirvana, deseja que a febre chamada vida chegue ao seu fim. Podemos jogar com a ideia de que a morte nos alcança porque a desejamos. Talvez pudéssemos vencer a morte, se não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós. Assim, poderíamos dizer que toda morte é um suicídio encoberto.”

‘”Em que o senhor está trabalhando?”

“Escrevo uma defesa da psicanálise secular. Pretendem tornar ilegal a prática por pessoas que não sejam médicos em exercício. A história, essa velha plagiária, se repete sempre que há uma descoberta. Inicialmente, os doutores se opõem impetuosamente a toda verdade nova. Imediatamente depois, tentam monopolizá-la.”

“O senhor já se analisou?”

“Obviamente. O psicanalista deve analisar-se constantemente. Aumenta nossa capacidade de analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os demais depositam nele os seus pecados.”

“Sempre pensei que a psicanálise necessariamente induzisse naqueles que a praticam a caridade cristã. Não há nada na existência humana que a psicanálise não nos ajude a compreender”, afirmei.

“Compreender tudo não é perdoar tudo. A psicanálise ensina que devemos evitar. Tolerar o mal não é em absoluto um corolário do conhecimento.”

A noção de retidão de Freud é herança de seus antepassados. É uma herança da qual se tem orgulho, como se tem orgulho de sua raça. “Meu idioma é o alemão. Minha cultura e minhas conquistas são alemãs. Intelectualmente, me considerei alemão até perceber que os preconceitos anti-semitas iam aumentando na Alemanha e na Áustria. A partir de então, deixei de considerar-me alemão. Prefiro definir-me como judeu.”

Senti-me decepcionado. Ao meu ver, o espírito de Freud devia voar mais alto, acima de qualquer preconceito racial, e permanecer à margem do rancor pessoal. Não obstante, sua indignação, sua justa cólera, o faziam humanamente muito mais atraente. “Agrada-me descobrir, professor, que o senhor também tem seus complexos.”

“Nossos complexos são a causa de nossa fraqueza; mas também, constantemente, são a nossa fortaleza”, respondeu Freud.

Oscar Nemon esculpe um busto de Sigmund Freud, em 1931. (Foto: Reprodução)
“Algumas vezes me pergunto se não seríamos mais felizes sabendo menos dos processos que dão forma aos nossos pensamentos e emoções”, afirmei. ”A psicanálise despoja a vida de seus encantos ao vincular cada sentimento aos complexos que a originam. Descobrir que alojamos no coração um selvagem, um criminoso, uma besta, não nos faz mais felizes.”

”O que você tem contra as bestas?”, perguntou Freud. “Eu prefiro muito mais a companhia dos animais. São muito mais simples. Não têm uma personalidade dividida, não sofrem a desintegração do ego que surge da tentativa do homem de adaptar-se à regras da civilização. O selvagem, como a besta, é cruel, mas está livre da mesquinharia própria do ser civilizado. A mesquinharia é a maneira que o homem tem para vingar-se da sociedade pelas restrições que esta lhe impõe. É o sentimento vingativo que anima o reformista e o fofoqueiro.

Um selvagem pode nos cortar a cabeça, nos devorar, nos torturar, mas nos poupará das pequenas e contínuas ferroadas que, às vezes, fazem que a vida em uma comunidade civilizada seja quase intolerável. Os hábitos e idiossincrasias mais desagradáveis do homem, sua falsidade, sua covardia, sua falta de respeito, são produtos de uma adaptação incompleta a uma civilização complexa. São o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais satisfatórias resultam as simples e intensas emoções de um cachorro que agita o rabo quando está contente ou late para manifestar irritação!”

“Talvez o senhor seja o responsável, ao menos em parte, pelas complicações da civilização moderna. Antes da invenção da psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade está sob o domínio de uma beligerante hoste de complexos. A psicanálise converteu a vida em um complicado quebra-cabeça.”

“Em absoluto”, respondeu Freud.  “A psicanálise simplifica a vida. Depois de analisarmos, conseguimos uma nova síntese. A psicanálise reorganiza o labirinto de impulsos dispersos e tenta encaixá-los na meada a que pertencem. Ou, para mudar de metáfora, proporciona o fio que permite ao homem sair do labirinto de seu próprio inconsciente.”

“Tenho a impressão de que a estrutura científica que o senhor construiu é altamente elaborada. Seus elementos fixos (a teoria da ‘substituição’, da ‘sexualidade infantil’, a ‘simbologia dos sonhos’ etc.) parecem inamovíveis.”

“Isso é só o começo. Não sou mais que um principiante. Tive êxito no que se refere a desenterrar monumentos submersos no substrato da mente. Mas onde encontrei uns poucos templos, outros podem descobrir um continente.”

“Continua pondo o máximo de ênfase no sexo?”

“Posso ter cometido muitos erros, mas estou completamente seguro de que não me equivoquei ao considerar predominante o instinto sexual. Dado que se trata de um instinto tão poderoso, choca-se com especial frequência com as convenções e salvaguardas da civilização. Como mecanismo de autodefesa, a humanidade tenta negar a sua suprema importância. Analise qualquer emoção humana, não importa o quão distante pareça estar da esfera sexual, e seguramente descobrirá em algum lado o impulso primário, ao qual a própria vida deve a sua perpetuação.”

Anoiteceu. Já era hora de pegar o trem de volta para a cidade.

“Não me faça parecer um pessimista”, pediu-me Freud. “Não desprezo o mundo. Mostrar desprezo ao mundo é só uma forma a mais de adulá-lo para obter reconhecimento. Não, não sou pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores. E não me sinto infeliz. Ao menos, não mais do que os outros.”

Tradução de Claudia Rossi.
Via acervo do blog da Folha

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

DERMOGRAFISMO - O MOTIVO DO SUMIÇO

A psicanálise é elitista?

TÔ MORRTAAAAAAAAA...RSRSSR